Dalmácia e Rio Grande do Sul: Entre a Peka e o Churrasco
Ou Duas Terras que Não se 'Entregá Pros Home' de Jeito Nenhum
Tem dias em que eu acordo com saudade do barulho da chuva no telhado de zinco da casa da minha Vozinha. Daquela casa simples de madeira, recheada de prestimosos crochês e com uma majestosa araucária no quintal, que nos dava pinhão no inverno.
Aquele som de infância gaúcha vem junto com o aroma de bergamota, pão caseiro e uma boa dose de polenta frita.
Mas aí eu atravesso a rua e o que vejo é o mar Adriático cintilando, azul e calmo, como se tivesse sido polido à mão por alguma deusa pagã com tempo de sobra.
Então eu suspiro.
“Não é nem um pouco ruim assim também.”
Sou gaúcha. Com sotaque, com mate, com drama. Daquelas que esquecem o que comeram ontem, mas sabem o Hino Rio-Grandense de cor e têm argumentos prontos sobre a importância do cavalo na história do Estado e do pronome “tchê”.
Nasci no Sul do Brasil e fui parar na Dalmácia, esse pedaço de paraíso croata onde o mar é azul de doer e o relógio parece ter entrado em greve.
Aqui o tempo anda devagar, o povo fala alto e os ventos têm nomes e personalidades próprias: Bura, Jugo, Maestral, Tramuntana… escolha um.
O Bura, em especial, soprando do norte, parece carregar segredos milenares e uma leve intenção de arrancar o telhado da tua casa.
O mais conhecido vento gaúcho, por sua vez, o Minuano, também tem gênio forte e faz parte da nossa alma popular.
A gente já nasce aprendendo a segurar o cabelo com uma mão e a dignidade com a outra.
Na minha terra existe muita intensidade: a carne, o abraço, a saudade.
O gaúcho ama com força, discute com paixão e transforma qualquer roda de chimarrão num seminário sobre existencialismo ou previsão do tempo.
Aqui na Dalmácia, as emoções são tão intensas e profundas quanto, mas menos escancaradas.
O dálmata é certamente mais estoico, mais “pomalo, fjaka” na hora de resolver as coisas do dia a dia (“devagar, devagar... vamos com calma nessa bagaça”).
Mas é igualmente bairrista: seus casamentos, suas festas, sua música, seu time de futebol, seu dialeto, sua história... tudo é motivo de orgulho. Positivamente ou às vezes nem tanto.
Assim como o gaúcho, o dálmata tem aquele “leve exagero” com o que é seu: essa maneira de pertencer a um país unido, mas querendo sempre ser o irmão rebelde e diferentão da família.
Indomável, cabeça-dura, meio desconfiado… mas com um coração gigantesco quando a barreira do se conhecer é quebrada.
E olha... demorou, mas eu aprendi certas coisas.
Entendi que o café deles - o simples “s toplim” - tem quase a mesma função do nosso chimarrão: juntar gente pra prosear, socializar e resolver a vida alheia com sabedoria de esquina.
Nossos gaiteiros não passariam vontade nas festas da Dalmácia: é praticamente um bailão com coral a capela, regado a trago e canções antigas.
Por essas bandas, frescura não dura e fiasquento não floresce nesse chão.
Se o brasileiro acha o gaúcho meio bruto na fala, é porque ainda não conheceu um dálmata num dia calmo.
Somos florzinhas de tuna perto dos hermanos da Dalmácia: espinhentas, mas doces e fofinhas.
Tanto no Rio Grande do Sul quanto na Dalmácia, mesa cheia é forma de dizer: ‘tu és bem-vindo(a), senta e come’. E não ouse recusar - ofensa maior, só não repetir o prato.
Claro, existe o choque cultural.
Tentei apresentar o mate, sim. Levei cuia, erva e térmica como quem leva uma relíquia de família.
Me olharam como se eu tivesse puxado uma espada medieval da mochila.
Aqui, o café é rei do dia (no que diz respeito à parte não alcoólica hehehe).
Mate é “erva medicinal de alguns brasileiros esquisitos”. E daí bate a falta da companhia do meu Vovô na hora do chimarrão.
E o churrasco?
Ah, o ritual do assador gaúcho… ao som de uma playlist gaudéria de respeito, com sua tábua de madeira, faca afiada, ceva gelada ou uma caipa tinindo e pano de prato no ombro, isso virou uma lembrança distante.
Aqui se grelha cordeiro, porco, polvo. Sardinha. Berinjela.
Com um fio de azeite, uma pitada de sal grosso, alecrim e um silêncio quase cerimonial.
É bom? Demais. Vocês precisam experimentar uma Peka assada diretamente na brasa de galhos de oliveira… indescritível o sabor e aroma.
Mas falta a mística do assador pachola gritando “tá no ponto, tchê!”, mesmo quando a carne ainda tá mugindo, ou o clássico “pode botar o arroz pra cozinhar!”. E tudo isso acompanhado de uma maionese caseira? Args. Saudades.
Gaúchos e dálmatas são unidos pelo orgulho à terra.
O gaúcho se gaba da tradição, da picanha, do céu mais bonito do mundo.
O dálmata se orgulha da oliveira centenária, do figo do quintal, do mar que parece cena de cinema.
E ambos acreditam com convicção e um olhar de canto de boca que não existe lugar melhor no planeta.
Mas nem todo mundo cruza as porteiras dos seus rincões pra ver o mundo. Seja por medo, por amor ou por raiz, e tudo bem. Cada um caminha o mapa como sabe.
E o lírico dálmata-gaúcho também vive à flor da pele…
Assim como o grande César Passarinho virou lenda ao cantar:
“E se Deus não achar muito tanta coisa que eu pedi
Não deixe que eu me separe deste rancho onde nasci
Nem me desperte tão cedo do meu sonho de guri
E de lambuja permita que eu nunca saia daqui”
O dálmata Mladen Grdović também imortalizou seu pago com esses versos:
“Sou criança do mar,
minha mãe é a Dalmácia,
tenho um barco e uma guitarra,
um coração que sabe amar.
Não há nada pra mim melhor que o meu sul
e meus pinheiros;
trocaria todo o ouro do mundo
por minha rocha branca.”
Muitos brasileiros acham essa preservação cultural bonita apenas no exterior ou em certas regiões do país.
Bacana mesmo é ir pra fora e falar sobre tal festival em tal região de tal nação (qualquer país no mundo tem suas peculiaridades locais - afinal, o gondoleiro de Veneza não é tradição em Nápoles).
Mas eu acho linda a minha própria identidade cultural, mesmo sem ser prenda de CTG.
É bom viver num mundo globalizado, com trocas, culturas, internet e sushi. Amo!
Mas é igualmente delicioso ser de um lugar com códigos próprios, expressões únicas e sotaque que entrega de onde a gente vem antes mesmo da gente dizer o nome.
No fim das contas, tanto na Dalmácia quanto no Rio Grande do Sul, seguimos tentando entender o tempo, reclamando do vento, comendo bem demais e abraçando forte quem a gente ama.
Porque, assim como tantos outros, somos dois povos que nasceram do fogo, do sangue e do suor.
No fundo, sejamos francos:
somos todos um pouco exagerados.
E isso, graças aos céus,
é uma coisa linda de se viver.
Hoje, sou feita desses dois mundos.
Sou a mulher que varre o pátio ouvindo Telmo de Lima Freitas e estende a roupa no varal ao som das gaivotas croatas.
Que mistura torta de bolacha com krempita, vinho de garagem com saudade de carreteiro.
Ensina os filhos a dizerem “guaipeca, bah, guri” e “pomalo, di si? ajme meni” no mesmo fôlego.
De certo eu já não pertença completamente a lugar algum, tantos anos longe do meu chão…
E talvez esse seja justamente o meu encanto.
Ser ponte. Ser mistura.
Ser azul do Adriático e o verde dos Pampas.
Ser vento com nome e vento sem rumo.
Ser saudade do cheiro de terra molhada e encantamento com o sol de ouro.
Todo verão, observo as andorinhas que cortam o céu azul da Dalmácia sabendo que elas também passam, meses depois, voando alto sobre o céu azul do Rio Grande do Sul.
Talvez não sejam exatamente as mesmas, mas gosto de acreditar que sim. Que, em algum ponto do mapa, entre o sal do mar e das montanhas dálmatas e o cheiro da terra vermelha da Serra Gaúcha - ou o verde dos Pampas, essas pequenas viajantes se reconhecem no vento.
Porque quem busca um lar, horizonte aberto e um silêncio cheio de significado sempre encontra caminho até o sul: seja o sul da Europa ou o sul do Brasil.
Que texto lindooooo! ❤️
Esse final ficou demais ... Vou pegar pra mim. Rs